
Retratado em reportagem sobre a seca publicada pela Folha em 1984, o agricultor aposentado José Pedro de Alcântara, 75, vive hoje na zona urbana de Custódia (340 km de Recife).
Localizado 28 anos depois, em meio a uma nova estiagem prolongada, diz que ainda sofre com a falta de água.
A fazenda que tinha em 84 foi vendida em meados da década de 1990. A barragem construída pelas frentes de emergência na época secou.
Morando em uma casa simples com a mulher, Alcântara diz que considera bom que as frentes de emergência tenham existido. Para ele, a seca atual "pede" a criação de um programa semelhante.
"Já passei por muitas secas. Aquela de 1984 não era igual essa não. Ela judiava muito, o pessoal não tinha nem o que comer, mas essa de agora veio forte." (FÁBIO GUIBU)
"Nasci no sítio Malhador, em Flores [PE], e já passei por muitas secas. Aquela de 1984 não era igual essa não. Ela judiava muito, o pessoal não tinha nem o que comer, mas essa de agora veio forte, é geral mesmo, em todo canto.
Eu achei bom que existiram as frentes de emergência na seca de 1984. Pelo menos tinha muito serviço.
Todo mundo recebia direitinho, saia satisfeito.
Depende do governo querer abrir uma emergência agora, porque a seca está pedindo. Mas eu não posso dizer, porque só mando na minha pessoa mesmo. Mas tem uns lugares que precisavam de emergência, isso tem.
Tenho um irmão que está carreando água de longe para dar à meia dúzia de gado que tem. E lá nunca faltou água antes. O açude nunca tinha secado, e secou este ano.
A gente vê os bichos se acabando nas roças. Tem gente aqui que está perdendo o gado quase todo de fome.
Sei como isso é difícil. Sou filho de agricultor e comecei a trabalhar aos oito anos. Amanhecia, eu e meu pai íamos tirar leite das vacas, picar palma, carrear as coisas.
Desse tempo para cá, nunca parei de trabalhar. Minha profissão a vida toda foi na agricultura. Gostava de fazer amizade com todo mundo, e todo mundo gostava de mim.
Eu ainda era menino quando meu pai comprou uma terra aqui em Custódia [PE] e fui morar lá. Ele morreu depois de uns anos, e eu comprei um sítio pertinho dali. Passei oito anos morando lá, criando um gadinho também.
Mais tarde, vendi esse terreno e passei para a fazenda Pitombeira. Eu criava um pouco de gado e umas ovelhinhas. Pouca coisa, sabe?
Na minha fazenda tinha 21 pés de coco e eu nunca vendi um só coco para ninguém. Eu dava tudinho para os vizinhos. Todo mundo gostava de mim nessa parte aí.
Eu ganhava pouco, mas era bem zelado, tinha seu valor.
Eu lembro que na frente de emergência de 1984, o tempo vinha seco. Era tanta gente trabalhando lá na terra que eu nem sei dizer quantas. Se eu disser, vou mentir.
Todo o pessoal da redondeza trabalhava ali. Era homem, mulher, criança. Uns carregavam pedra, outros juntavam terra, carreavam, faziam o que precisava.
Na frente de trabalho, nós fizemos a limpeza da barragem. Depois, quando veio a chuva, o pessoal saiu e acabou-se a emergência.
A água ficou lá. Todo mundo pedia e eu dava, nunca fiz questão, de jeito nenhum.
Passei uns oito anos na Pitombeira e quem comprou deixou ela ir abaixo. Não tem mais nada do que deixei. Só sobrou o açude aterrado, mas não tem água, não. Toda vez que eu passo por perto, ainda sinto aquela lembrança.
Das pessoas que trabalharam na Pitombeira, uns foram embora para São Paulo, outros morreram. Mas quase todo mundo mora na cidade.
Tenho seis filhos, e também fui morar na cidade por causa deles. Eles diziam para eu comprar uma casa para a gente. Eu não queria, mas acabei vendendo a terra.
Comprei duas casas, mas depois os filhos se espalharam todinhos. Três foram morar em Petrolina e um na Bahia. Só dois ficaram. Eu me arrependi e quis vender as casas para comprar outro terreno, mas não achei negócio e acabei ficando na cidade.
Na cidade onde moro agora ainda tem falta de água.
Passo oito, 15 dias sem água.
Mesmo assim, acho melhor que a roça, porque a gente sabe que a água vem. Passam três, quatro ou dez dias, mas chega. No campo, não.
Passei uns dois anos ou mais só me lembrando do campo. Mas, com o tempo, me acostumei. Ainda trabalhei uns dois anos ou três na roça, arrendando terreno dos vizinhos no inverno [período de chuva no Nordeste]. Mas não dava lucro e desisti.
Para mim, quem está sofrendo mais agora com a seca são os criadores.
Hoje, muita gente tem a vida boa, um negócio ou outro, uma coisa ou outra. Naquele tempo, não. Todo mundo trabalhava. Não tinha essas coisas que tem hoje do governo. Todo mundo trabalhava: homem, mulher, tudo."
Fonte: Folha de São Paulo
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